Desde que a Americanas jogou a bomba contábil no mercado, enormes estragos foram causados em pouquíssimos dias. Na contramão de suas concorrentes, a empresa distribuía dividendos gordos há tempos, e a venda de ações de controladores poucos meses antes do escândalo financeiro levanta suspeitas do crime de insider trading. Tudo isso levou a companhia ao pedido de recuperação judicial protocolado no dia 19 de janeiro, depois de várias tentativas de execuções e bloqueios de recursos por parte dos credores.
Além de atingir em cheio a vida de 44 mil trabalhadores, a confusão tem tirado o sono de credores e investidores da empresa, e não é para menos. Prova disso foram as perdas do Fundo Nu Reserva do Nubank, que investia em títulos da Americanas e de sua controladora, a B2W.
Neste conteúdo, explicaremos o que é uma recuperação judicial, como ela acontece e quais os efeitos que esse instrumento legal tem para as empresas e para os seus credores e investidores. Acompanhe a seguir.
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O que é a recuperação judicial?
A recuperação judicial (RJ) é um procedimento que visa a preservação da empresa, evitando que ela quebre. O seu objetivo não é socorrer apenas os sócios, mas todos os que têm algum vínculo com ela de alguma forma. Ou seja, os benefícios de uma RJ bem sucedida se estendem também aos funcionários, que continuam com seus empregos, aos fornecedores, que não perdem um parceiro comercial, e até mesmo ao Estado, que mantém uma fonte de arrecadação de impostos.
Na prática, a recuperação judicial tenta um acordo entre a empresa devedora e todos os seus credores, e esse processo é todo supervisionado pela Justiça. Diferentemente do que ocorre na falência, os sócios não são afastados da condução do negócio. Ao contrário, a ideia é sanear as finanças da organização, para que ela possa continuar a operar normalmente depois de encaminhadas as soluções para os problemas financeiros.
Como é feita a recuperação judicial?
Para que uma empresa possa solicitar RJ, o primeiro passo é elaborar um levantamento minucioso de todas as suas dívidas. De posse dessas informações, cria-se o Plano de Recuperação Judicial, que contempla uma proposta de pagamento dos débitos e tudo o que é necessário fazer para realizá-lo.
Tradicionalmente, o processo de recuperação judicial possui três fases: a postulatória, a deliberativa e a executória. A seguir, veja o que acontece em cada uma dessas etapas.
Fase postulatória
A fase postulatória inicia quando a empresa entra na justiça para solicitar a RJ. Para isso, deve apresentar um pedido formal que contemple: as razões pelas quais está em crise, as demonstrações contábeis dos últimos três anos (pelo menos), as dívidas em aberto e a relação patrimonial dos sócios.
A partir daí, ocorre a suspensão temporária de todas as ações de cobrança por parte de bancos, fornecedores ou quaisquer outros credores. Nesse sentido, a lei permite que o juiz suspenda as exigibilidades mesmo antes de ter analisado os documentos.
Fase deliberativa
Já na fase deliberativa, acontece a discussão e a elaboração do plano de recuperação. Nesse momento, o juiz nomeia um administrador judicial para intermediar o processo entre a empresa, os credores e a Justiça. A empresa tem 60 dias para apresentar o plano, que será votado em assembleia pelos credores.
Para que o juiz conceda a RJ, o plano deve ter a aprovação de 50% mais um dos credores. Se houver rejeição pela maioria, a Nova Lei de Falências permitiu que os credores apresentem planos alternativos de recuperação em até 30 dias. Nesse caso, será marcada uma nova apreciação e votação em assembleia.
Se o novo plano não for aprovado, o juiz decretará a falência da empresa.
Fase executória
Por fim, se o plano é aprovado, inicia a fase executória, que é quando o juiz concede à empresa a recuperação judicial. Essa etapa é importantíssima, pois se houver o descumprimento de qualquer item do plano, a RJ pode ser convertida em falência. Por isso, a execução dessa fase é fiscalizada pela Justiça e pelos credores da empresa.
Se tudo dá certo, a empresa reorganiza suas finanças e segue a vida. Inclusive, na opinião de muitos juristas e empresários, ela se torna melhor do que era quando consegue cumprir o plano de recuperação judicial. Porém, se ela fracassa, fecha as portas e os credores disputam os ativos que sobraram.
Como é o plano de recuperação judicial?
Possivelmente, a elaboração do plano de RJ seja a etapa crucial de todo o processo. É nessa hora que a empresa precisa passar credibilidade para os credores, caso contrário nem terá chances de tentar dar a volta por cima.
Como vimos, esse documento deve conter detalhadamente tudo o que os gestores pretendem fazer para reerguer o negócio. De acordo com a Lei 14.112 de 2020, os próprios credores também podem apresentar um plano de recuperação para a empresa. Como as partes são livres para negociarem entre si, dá para montar um fluxo financeiro adequado tanto para a empresa quanto para os credores. Dessa forma, as chances de sucesso na liquidação das dividas acabam sendo bem maiores.
Além de abatimento e concessão de carência para pagamento, esse plano costuma conter pedido de parcelamento de dívidas. Outras propostas que costumam aparecer são divisão ou fusão da empresa, negociações com sindicatos para redução de jornada e salários dos empregados e inclusão de credores no quadro societário.
Outro ponto muito importante desse documento é trazer a avaliação de todos ativos da empresa, e mostrar a viabilidade econômica do planejamento.
Quem recebe primeiro na recuperação judicial?
De acordo com a legislação, existem diferentes classes de credores, dependendo da relação que eles possuem com o devedor. E essa divisão em classes é importante na hora do recebimento, pois existe uma ordem de prioridade que é a seguinte:
- – 1°) créditos trabalhistas até 150 salários mínimos ou de acidentes de trabalho;
- – 2°) créditos com garantia real, como imóveis;
- – 3°) créditos tributários, exceto multas;
- – 4°) demais créditos.
Ou seja, a ordem de recebimento beneficia os funcionários, os credores com alguma garantia real e o governo. Por outro lado, fornecedores, bancos que operam somente com aval e outros parceiros ficam mais atrás na fila. Se a empresa vem a falir, acabam não recebendo nada.
O que acontece com os investidores nesse processo?
Mesmo que o processo de recuperação judicial vise reerguer a empresa, ele acaba afetando negativamente os títulos da emissora.
Se a companhia tem ações listadas na bolsa, ao entrar em RJ ela deixa imediatamente de fazer parte do Ibovespa. Isso porque um dos critérios para pertencer ao índice é não estar em processo de administração especial. Dessa forma, a liquidez dos seus títulos cai e a volatilidade aumenta, devido às incertezas sobre os rumos da operação. Além disso, as ações se desvalorizam fortemente, e todos esses problemas são sentidos diretamente pelo acionista.
Em relação às debêntures, existe uma categoria que prevê garantia real, que podem ser bens da própria empresa ou de terceiros. Isso atenua o risco do investimento, pois coloca o credor no segundo nível de recebimento.
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