O rombo no balanço das Americanas é o maior escândalo da bolsa brasileira dos últimos anos, e pode ser que seja o mais grave em termos de prejuízos para o nosso mercado de capitais até hoje. No caso da empresa, a sequência de acontecimentos, que iniciou com a divulgação de inconsistências contábeis, indica que possa ter ocorrido insider trading, uma prática desleal considerada crime financeiro pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
O que é insider trading?
Insider trading é o uso de informações privilegiadas com o objetivo de obter vantagem em alguma negociação do mercado financeiro. Na prática, isso acontece quando alguém sabe antes de outras pessoas algo que possa mexer com o preço de um ativo financeiro. Ao tomar conhecimento disso, utiliza a informação para negociar ações e/ou opções dessa empresa, ou cotas, no caso de fundos de investimentos.
Por exemplo, dias antes da divulgação de um balanço, um grupo de acionistas descobre um prejuízo ou algum fato que possa impactar negativamente a classificação de risco da empresa. Dessa forma, começam a vender uma quantidade de ações da companhia que a CVM considera atípica.
Por si só, esse fato não basta para caracterizar a prática de insider trading. Mas pode ser um indício de que alguém teve acesso a informações privilegiadas. Nessa situação, a CVM pode querer investigar a situação, para saber se, de fato, houve algum vazamento de dados que possa ter alterado decisões de investimentos.
O que se considera informação privilegiada?
Basicamente, informação privilegiada é qualquer fato que pode mexer com o preço das ações de uma empresa. E esses fatos podem estar ligados a diferentes aspectos, como resultados, governança corporativa, estratégias do negócio, mudança do controle acionário, e assim por diante.
A empresa tem a obrigação de divulgar todos esses acontecimentos aos investidores e ao mercado. Porém, isso não ocorre de forma imediata, pois ela precisa formalizá-los e fazer a comunicação por meio de um fato relevante. Até que isso aconteça, as informações ficam disponíveis somente para um grupo menor de pessoas, normalmente controladores a administradores. É justamente nesse hiato entre o acontecimento e a divulgação formal do fato que as práticas de insider trading acontecem.
Normalmente, quem pratica esse crime são profissionais que têm ligação direta com a empresa, pois eles são os primeiros a saber dos fatos relevantes. Ou seja, podem ser insiders os administradores, diretores, membros do conselho fiscal, subordinados ou terceiros de confiança dessas pessoas, e por aí vai.
No entanto, nem sempre o insider trading parte de quem quebrou o sigilo. Ou seja, a prática não se restringe somente aos profissionais da empresa, pois outras pessoas também podem ter tido acesso a informações confidenciais. Nesse sentido, a CVM a Lei 10.303/2001, no artigo 155, parágrafo 4º, é bem clara:
“É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários”.
Tipos de insider trading
Existem duas maneiras de utilizar uma informação confidencial para benefício próprio. Por isso, costuma-se classificar o insider trading como primário e secundário.
No insider trading primário, quem comete o crime é quem teve acesso direto à informação privilegiada. Nesse caso, estamos falando de pessoas que, pelo próprio cargo, naturalmente poderiam conhecer fatos sigilosos da empresa. Alguns possíveis insiders desse tipo seriam gestores ou prestadores de serviços que lidam com informações contábeis ou contratuais, por exemplo.
Por outro lado, o insider trading secundário é aquele que recebe a informação da fonte primária. Isso pode acontecer de forma deliberada, como uma dica ou alerta, ou de forma acidental, como uma conversa ouvida por terceiros ou vazamento de e-mails, por exemplo.
Independentemente da forma como aconteça, qualquer tipo de insider trading é qualificado como crime e passível das punições vistas anteriormente. Segundo a legislação do setor, qualquer informação relevante que tenha relação com algum título negociado no mercado deve ser divulgada publicamente. Dessa forma, não haveria favorecimento para um ou outro investidor, pois todos poderiam tomar conhecimento do fato ao mesmo tempo.
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Consequências dessa prática para o mercado
A utilização de informações confidenciais em benefício próprio traz sérios prejuízos aos envolvidos e gera desconfianças que podem abalar o mercado de capitais.
A Resolução CVM Nº 62 veda qualquer prática que possa alterar a oferta ou demanda de ativos financeiros:
“Art. 3º – É vedada aos administradores e acionistas de companhias abertas, aos intermediários e aos
demais participantes do mercado de valores mobiliários, a criação de condições artificiais de demanda,
oferta ou preço de valores mobiliários, a manipulação de preços, a realização de operações fraudulentas
e o uso de práticas não equitativas.“
Já a definição de prática não equitativa consta no artigo 2º, inciso IV:
“Prática não equitativa: aquela de que resulte, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialmente, um tratamento para qualquer das partes, em negociações com valores mobiliários, que a coloque em uma indevida posição de desequilíbrio ou desigualdade em face dos demais participantes da operação”.
Em outras palavras, o vazamento de informações pode privilegiar determinados grupos e lesar outros que não tiveram esse benefício. Dessa forma, corrompe o sistema de igualdade determinado pelo mercado de capitais e, por isso, é considerado uma prática não equitativa.
Em relação à empresa, o dano do insider trading é justamente abalar a credibilidade na sua governança. Inclusive, há casos em que a imagem da companhia é prejudicada a ponto de afastar investidores por um bom tempo.
Exemplo de insider trading no Brasil
Por aqui, um dos casos mais famosos foi o da JBS, que resultou na primeira prisão por insider trading no Brasil.
Os irmãos Wesley e Joesley Batista, donos da FB Participações, fizeram uma delação premiada, fato que afetou drasticamente a JBS. No entanto, dias antes, os dois haviam feito operações milionárias com ações da companhia, lucrando milhões antes do valor da empresa despencar.
Isso levou à prisão de ambos em setembro de 2017, acusados de manipulação do mercado financeiro por meio de insider trading. O fato deixou o mercado nacional em polvorosa e repercutiu também no exterior. Tamanho foi o estrago, que até hoje o evento é lembrado como “Joesley Day”.
Caso Americanas: suspeitas de vazamento de informações
Logo após o escândalo, foi noticiado que diretores haviam vendido mais de R$ 210 milhões em ações da companhia no segundo semestre de 2022. Nesse sentido, a suspeita é de que eles pudessem ter informações privilegiadas sobre o que estaria prestes a acontecer com a empresa. Por isso, negociaram as ações antes da divulgação das inconsistências contábeis, fato que fez as ações da Americanas caírem mais de 80% da noite para o dia.
Qual a diferença entre insider trading e front runner?
O front runner também é um crime financeiro que envolve informações sigilosas. A diferença é que, nesse caso, quem comete a fraude não é o insider primário ou secundário, mas sim corretores ou intermediadores financeiros.
Por exemplo, imagine que um cliente dê orientação a sua corretora para que execute uma grande ordem de venda. Pelo valor da ordem, isso poderia movimentar o preço da ação para baixo. Percebendo isso, o agente financeiro se adianta e vende ações da empresa antes de executar a ordem do cliente, para tirar proveito da informação que obteve. Nesse caso, ocorreu o típico crime de front runner.
Quem fiscaliza esse tipo de crime é a CVM, que aplica sanções que podem ir da suspensão dos cargos dos agentes envolvidos até as penas de reclusão e multa, que vimos anteriormente.